Guarda: «A Democracia é meio ao serviço de um bem maior», considera Luís Silva

Docente de Educação Moral e Religiosa Católica lembrou papel do estado na organização das sociedades e a importância da fé para o exercício verdadeiro da liberdade

No âmbito das XVI Jornadas do Conhecimento promovidas pela Galeria Paz de Espírito, às quais também se associou o grupo de Educação Moral e Religiosa Católica do Agrupamento de Escolas de Seia, realizou-se no dia 18 de abril, uma conferência para os alunos do ensino secundário e alunos do 9.ºano sob o tema “Fé, Democracia e Liberdade em tempo de mudança”.  Para esta iniciativa, contamos com a preciosa colaboração do Prof. Luís Silva, docente de Educação Moral e Religiosa Católica, no Agrupamento de Escolas de Albergaria-a-Velha, na diocese de Aveiro.

O seu vasto currículo e a sua sapiência levaram os alunos e os professores que tiveram oportunidade de assistir à sua preleção, a uma reflexão profunda, holística sobre a relação entre a fé, democracia e liberdade. Partilhamos, na integra a sua reflexão.

Começou por dizer que é preciso termos claro que, por sermos seres racionais, os conceitos condicionam de modo muito significativo o que vivemos. Se tivermos uma ideia incorreta do que seja o amor, do que seja a liberdade, do que seja a sexualidade, vou viver à luz de ideias erradas que vão condicionar o meu viver. É por isso que devemos, como diz um grande teólogo (Karl Rahner) fazer o ‘esforço do conceito’. Quem não o faz corre o risco de viver à luz de quimeras e ‘fantasmas’.

Assim acontece com os conceitos de liberdade, com o de democracia e com a própria fé.

A - A democracia é um fim em si mesma…

A democracia é um meio: o fim é a pessoa. Sendo "a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros", como afirmava Churchill, não pode ser absolutizada como se fosse um fim: enquanto método, ela deve estar ao serviço do bem maior que é o bem da pessoa humana.

Do mesmo modo, o Estado não é fim em si mesmo: é um meio. É a organização sistematizada da sociedade que deve entender-se como serviço à pessoa humana.

B - Numa democracia, todos os âmbitos da vida pessoal e social devem ser geridos com base na vontade da maioria.

Esta é a tentação dos estados totalitários: abrangerem todos os âmbitos da vida humana.

Há âmbitos da existência que não são espaços de democracia, como, por exemplo, a educação, a família. O saber e a educação não são o resultado de decisões democráticas: pressupõem ‘axiomas’ consentidos e presumidos em nome do bem maior da pessoa. Numa família, não é por decisão democrática que se estabelece quem é o pai ou quem é a mãe ou quem são os filhos.

No próprio âmbito político, as democracias deverão autoimpor-se limites: como refere Zagrebelsky, as democracias críticas (que sabem que a maioria é volúvel e manipulável) devem definir referências estáveis que condicionem as decisões menores. No limite, como diz o ex-presidente do Tribunal Constitucional, as democracias devem perceber que não deveriam dispor da vida dos seus cidadãos. O limite deve ser a vida e a morte dos cidadãos. Os Estados deveriam autoimpor-se não decidir sobre a possibilidade da morte dos cidadãos.

C - A liberdade de alguém acaba onde começa a liberdade de outro.

A Herbert Spencer se deve esta ideia. É uma ideia liberal que pressupõe que somos ‘mónadas fechadas’, em que os outros são um estorvo. Pressupõe uma ideia de liberdade identificada com ‘exercício de vontade’.

A liberdade é, pelo contrário, muito mais uma ação da inteligência.

Há muitos anos, que deveríamos rever o conceito de liberdade que estrutura as nossas decisões coletivas, principalmente, as que são vertidas em lei. E entre os pressupostos da noção de liberdade que temos, há um erro, no seu entender, que já vem de longe: o que ele chama o ‘erro de Descartes’.  O erro de Descartes não é só ele ser dualista e ter reduzido o ser humano ao pensamento (à res cogitans), ainda que isso já seja suficientemente grave. E não é, também, só a falta da dimensão emocional ao sujeito cartesiano.Mais grave do que tudo isto, é o outro ‘erro de Descartes’.

E esse outro erro de Descartes é a sua convicção de que a primeira certeza que temos é a de que existimos.

A primeira certeza que temos é a de que existem os outros, diante dos quais nos tornamos um eu. Nós só temos consciência de nós porque os outros a fizeram emergir em nós. Ela estava em potência no nosso interior, mas, sem os outros, jamais saberíamos existir. É o pai que chama; é a mãe que chama; são os outros que nos chamam que fazem emergir o eu que nunca brotaria se não fossem os outros. Isso demonstra-o a história dos meninos selvagens que, se abandonados na selva, sobrevivem, biologicamente falando, mas jamais têm consciência de si. São os outros humanos que fazem despertar o humano adormecido no interior de cada um de nós.

O primeiro ser de quem temos consciência é do tu que é a nossa mãe ou o nosso pai.

Sendo assim, as liberdades dos outros não só não são o limite da nossa como são a condição de possibilidade da nossa liberdade.Se repararmos bem, os outros é que nos dizem quem somos: se repararmos bem, nós na sabemos o cheiro que temos, não reconhecemos a voz que temos, não temos sequer noção da cara que temos (precisamos de algo fora de nós para sabermos qual é a nossa cara…). A nossa cara é a única que, sem a ajuda dos outros, não poderemos saber como é…

O erro de Descartes é, por isso, o solipsismo, a ideia de um sujeito que só tem como primeira certeza a de que existe, só, solitário, fechado em si mesmo… E quantos custos comporta esta ideia incorreta!

E a fé, nisto tudo?

À luz de todos estes pressupostos, a fé traz um ‘plus’ digno de nota. A fé, ao afirmar que a vida não se limita ao aqui e agora, permite a condição para a relativização do que não é absolutizável, tão importante na vida em comum. A fé olha a partir de cima, mas comprometida com a vida concreta.

Ajuda a não absolutizar as conquistas já obtidas, a não absolutizar os meios como se fossem fins, assegura a autêntica liberdade (a transcendência em relação à imanência) …

E é bom sublinhar que estamos num Estado que tem uma visão positiva da relação com a religião. Sublinhou que a nossa constituição nunca utiliza os termos ‘laico’ e ‘laicidade’, defende a liberdade religiosa e não a ‘neutralidade’ do Estado. Neste contexto, a fé religiosa sublinha vários dados a reter, dada a sua relevância, em contextos de mudança:

- em primeiro lugar, evidencia que o absoluto está fora da história; na história, tudo é caminho. Somos peregrinos. E quantas consequências isso comporta!

- em segundo lugar, afirma que todos, todos, todos os seres humanos são portadores de uma dignidade que decorre de serem amados igualmente por Deus, o que significa que a ninguém pode fazer-se mal, seja pequeníssimo, seja velhíssimo, seja portador de deficiência ou o mais robusto dos humanos. Em todos há uma dignidade que é anterior a toda a ação. Ressalvou que temos andado a citar a declaração universal dos direitos humanos, mas sem a ler com atenção. O preâmbulo dessa mesma declaração, o que nos mostra?

Repare-se que afirma que é o «reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis [que] constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;»

Parece que temos andado a defender que é a liberdade o fundamento da dignidade…Algo anda trocado!

- em terceiro lugar, afirma que a cada um cabe ter a oportunidade de fazer e lutar pelo seu sonho, o que significa que não deve ser tudo pensado ou sonhado por um ‘grande irmão ‘ (Big Brother, chamava-lhe Eric Blair, ou melhor George Orwell, no seu distópico romance ‘1984’). O Estado ou os grupos económicos gigantes não devem ter o monopólio de pensar o que é bom para cada um. Devem começar por respeitar e ouvir o que cada um quer para si mesmo, em particular, as famílias e as comunidades a que se pertence.

(Nós, em EMRC, chamamos isto o princípio da subsidiariedade, princípio que diz que quem está mais perto das pessoas e pode, com justiça, resolver os problemas, não deve ser substituído e impedido de o fazer pelos que são mais poderosos ou estão acima.)

- em quarto lugar, a fé religiosa diz de nós que somos, antes de tudo, seres de relação, seres inter-relacionais. No livro de Génesis, quando se afirma que o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, não se afirma que Deus ficou a olhar para o sujeito humano sozinho. Não! Diz-se ‘Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher.’ (Gn 1, 27). O ser criado à imagem e semelhança de Deus não é, primeiramente, o indivíduo, mas o ser humano relacional, a relação, e, concretamente, esta relação ‘homem-mulher’ que é criadora de vida, como Deus é criador. O ser humano é pessoa, antes de ser indivíduo…. É relação, antes de ser um número, uma quantidade.

-em quinto lugar, a fé também nos indica que o que somos é real, concreto, feito de chão e de terra e não um ideal de humano utópico e desenraizado. A fé cristã afirma que o homem é Adão, isto é, ‘humano’, feito de húmus, feito de fragilidade, de debilidade, o que significa que o corpo é parte da sua identidade, com o que isso tem de abertura ao outro, mas também de vulnerabilidade. A liberdade humana, à luz da fé cristã, não é absoluta e sem limites: parte do concreto, do condicionamento em que vivemos (cultural, linguístico, físico, aqui… aqui…). O que significa que somos, por um lado, abertos ao sonho, bem certo, mas também ‘indigentes’, frágeis, precisamos do outro, do mundo, do contacto, do aperto do mundo.

O que vivemos integra o que somos e faz parte de nós. Nada nos é indiferente. O corpo que somos é nós mesmos feitos exterioridade para os outros. Não é apêndice de nós. É nós mesmos visíveis e exteriorizados. (Já a alma é nós mesmos interiorizados. Nós todos na interioridade e na abertura ao infinito.) Não somos somas de partes. Somos uma unidade indissolúvel, feita de drama e sonho.

O Prof. Luís terminou a sua preleção lançando um desafio: a nossa liberdade corresponde a isto que a fé diz de nós: que somos seres intrinsecamente inter-relacionais. “Reparai, sem desviardes o olhar que no fundo da vossa barriga mora um umbigo”. Curiosamente, todos tendem a pensar que o umbigo é um sinónimo de narcisismo. E é se passarmos o tempo a olhar para ele, sem fazermos o que nos pedem os olhos, que é olharmos em frente. Mas se pensarmos bem, o umbigo é a única parte do nosso corpo que fala da nossa dependência dos outros: ele é o último resquício da nossa dependência absoluta da nossa mãe. “Nunca mais vos esqueçais, quando tiverdes a tentação de pensar que a liberdade é fazer o que se quer, sem contar com os outros: há um umbigo que está no centro da vossa existência, que vos diz que dependestes totalmente de outra pessoa e que foi porque ela vos amou primeiro que aqui estais.”

Foi um momento com muita beleza que despertou todos os sentidos e desafiou os alunos que usufruir da sua partilha e sabedora a refletir sobre a ligação entre a Fé, Democracia e Liberdade.

texto, fotos e destaques: Cristina Brito| EMRC Guarda

Educris|30.04.2024



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